"A escola virou um depósito de crianças"
Professora do Rio Grande do Norte ganha fama ao enfrentar deputados e expor a situação precária da educação no País
Professora do Rio Grande do Norte ganha fama ao enfrentar deputados e expor a situação precária da educação no País
Claudia Jordão
Oito minutos. Foi o tempo necessário para a professora potiguar Amanda Gurgel roubar a cena, dias atrás, numa audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Com apenas 1,57 m de altura, mas postura de gigante, ela proferiu um discurso no qual dizia, com ideias bem amarradas e rara transparência, receber salário de R$ 930 por mês (“menos do que os deputados gastam em suas indumentárias”), que os professores vivem uma crise de identidade e estão doentes. A condição indigna dos docentes não é novidade, mas o vídeo com a sincera fala de Amanda correu o País com intensidade impressionante e colocou em foco esse profissional, sobre quem está depositado o futuro do Brasil. Duas semanas depois de o vídeo do discurso ser postado na rede, havia sido visto quase 1,6 milhão de vezes.
Amanda, 28 anos, começou a dar aula aos 21. Há três, foi diagnosticada com depressão, afastou-se da escola e retornou em funções fora da sala de aula. Hoje, dá expediente na biblioteca de um colégio estadual e no laboratório de informática de um municipal. Além dos R$ 930, seu salário do município, recebe R$ 1.217 pelo Estado. Amanda decidiu lecionar ainda adolescente, mesmo sabendo que a remuneração era baixa. “Só entendi de fato o que isso significava quando tive de me sustentar e comprar meu primeiro quilo de feijão”, conta. Órfã de pais desde menina, ela nasceu em Natal e foi criada pelos tios. Estudou em escolas públicas e privadas, no interior do Estado. Solteira, sem filhos, tem uma rotina puxada. Mora sozinha numa quitinete, acorda às 5 horas, pega três ônibus para ir trabalhar e volta para casa somente às 22 horas.
ISTOÉ – O que mudou na sua vida desde a divulgação do vídeo?
Amanda Gurgel – Minha rotina está temporariamente alterada. A repercussão do vídeo gerou um assédio nacional e esse é um momento que eu quero divulgar os problemas da educação no País e ser uma porta-voz de meus colegas. Então, estou me doando.
ISTOÉ – Pensa em se candidatar a algum cargo público?
Amanda – Olha, não me vejo agora fazendo outra coisa. Sei que o meu lugar é na classe trabalhadora, no chão, na escola, junto com os meus colegas. Sou filiada ao PSTU desde o ano passado, mas sempre fui militante, primeiro no movimento estudantil, depois pela causa da educação. Mas, nunca pensei em me candidatar a nada. É uma discussão futura.
ISTOÉ – Como gasta seu salário?
Amanda – Não tenho luxo, só gasto com o essencial, como alimentação, moradia, vestimentas e plano de saúde. Quase não tenho acesso a lazer. A última vez que fui ao cinema foi em 2010.
ISTOÉ – Por que se afastou da sala de aula?
Amanda – Houve um tempo em que eu trabalhava em três horários, estava na rede privada, acabei assumindo o município e tinha uma média de 600/700 alunos. Comecei a dar aula em 2002, tinha 21 anos, estava eufórica, topando tudo. O ápice do problema de saúde foi de 2007 para 2008, quando percebi que estava estafada. Estava em sala de aula com alunos pouquíssimos proficientes. Alunos de sexto ano que não sabiam ler palavras básicas como bola, pato, entendeu? Comecei a me desesperar diante da realidade, não sou alfabetizadora. O que vou fazer se nada do que estou preparada para oferecer eles estão preparados para receber? Sou professora de língua portuguesa e literatura portuguesa e brasileira de alunos dos ensinos fundamental II e médio.
ISTOÉ – Por que as crianças não aprendem?
Amanda – O aluno de 6 anos está em uma sala de aula superlotada e não há condição de alfabetizar ninguém dessa forma. Fala-se muito em democratização do ensino básico, mas se cada etapa do processo de aprendizado não é trabalhada de forma adequada, não há democracia. A escola virou um depósito de crianças, que é o que os políticos querem. Eles querem ter um lugar para deixar a criança enquanto os pais vão trabalhar e nada mais.
ISTOÉ – Foi o início da sua crise?
Amanda – Foi. Fiquei um tempo de licença e voltei em adaptação de função. Minha última aula como professora de português foi em 2008.
ISTOÉ – Quais funções você desempenha em cada escola?
Amanda – A resposta revela um sério problema de infraestrutura. Na escola do Estado, onde trabalho de manhã, estou na biblioteca. Na escola do município, passei por diversas funções. Passei pela coordenação e pela biblioteca e agora estou no laboratório de informática. Apesar de os computadores terem chegado há cinco anos na escola, só agora eles começaram a funcionar.
ISTOÉ – Por quê?
Amanda – Por várias questões. Primeiro, a instalação das máquinas foi muito demorada. Para isso, é necessário um técnico da secretaria porque a escola perde completamente a garantia daquelas máquinas se acontecer qualquer coisa errada. Depois de instaladas, foi um longo processo para a chegada de um técnico para fazer funcionar a internet e outro extenso período para a instalação do ar-condicionado na sala. Foram cinco anos que nós passamos com os computadores na caixa e com aquela sala fechada, apesar de toda a carência que se tem de espaço.
ISTOÉ – Qual o principal problema da educação no País?
Amanda – Se for para eleger um apenas, eu diria a falta de investimento. Como pode um País que deveria investir 5% do seu PIB em educação e investe 3%, paga esse salário irrisório aos professores e deixa a estrutura da escola chegar a um estágio de precarização que precisa ser interditada, como aconteceu numa escola no interior do Rio Grande do Norte, na cidade de Ceará Mirim?
ISTOÉ – Por que foi interditada?
Amanda – O corpo de bombeiros interditou a escola porque nada mais funcionava lá. O teto estava para desabar, a instalação elétrica estava precária, oferecendo risco à integridade física dos alunos e dos professores. Todos esses problemas estão relacionados à falta de investimento. Com um salário digno, o professor poderia ficar na escola, preparando as aulas, conhecendo os alunos, poderia evitar casos como o do atirador Wellington de Menezes. Como um professor vai ser capaz de observar algo se ele tem 600 alunos e não é capaz de, quando chega em casa, visualizar quem são todos? Não temos como mudar essa realidade se não tivermos um investimento imediato. Não estou falando de daqui a dez anos. Há a necessidade de se investir 10% do PIB do País em educação.
ISTOÉ – A que você credita a sua educação?
Amanda – É uma junção de coisas. Desde muito novinha, sempre fui metida. Comecei a ser alfabetizada e já corrigia as pessoas. Também acho que o funcionamento das escolas no interior é bem diferente do da capital. Nas cidades pequenas, onde estudei, funciona melhor. O fato de o professor ter acesso direto aos pais dos alunos coloca a criança e o adolescente na situação de “eu não posso sair da linha, senão o professor vai falar para a minha mãe”. Então, há mais disciplina. Minha educação de base foi de fato muito boa.
ISTOÉ – Se algum aluno disser a você que quer ser professor o que diria?
Amanda – Depende do dia. Acho que fiz certo, mas tenho meus momentos. Já cheguei a dizer ‘não quero mais’, mas em outros momentos, como hoje, estou me sentindo cheia de energia para estar na sala de aula e trabalhar com o aluno. Quando a gente é adolescente, tem uma estrutura familiar por trás. Sempre soube que professor ganhava mal, mas só entendi de fato o que isso significava quando tive de me sustentar e comprar meu primeiro quilo de feijão.
Oito minutos. Foi o tempo necessário para a professora potiguar Amanda Gurgel roubar a cena, dias atrás, numa audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Com apenas 1,57 m de altura, mas postura de gigante, ela proferiu um discurso no qual dizia, com ideias bem amarradas e rara transparência, receber salário de R$ 930 por mês (“menos do que os deputados gastam em suas indumentárias”), que os professores vivem uma crise de identidade e estão doentes. A condição indigna dos docentes não é novidade, mas o vídeo com a sincera fala de Amanda correu o País com intensidade impressionante e colocou em foco esse profissional, sobre quem está depositado o futuro do Brasil. Duas semanas depois de o vídeo do discurso ser postado na rede, havia sido visto quase 1,6 milhão de vezes.
Amanda, 28 anos, começou a dar aula aos 21. Há três, foi diagnosticada com depressão, afastou-se da escola e retornou em funções fora da sala de aula. Hoje, dá expediente na biblioteca de um colégio estadual e no laboratório de informática de um municipal. Além dos R$ 930, seu salário do município, recebe R$ 1.217 pelo Estado. Amanda decidiu lecionar ainda adolescente, mesmo sabendo que a remuneração era baixa. “Só entendi de fato o que isso significava quando tive de me sustentar e comprar meu primeiro quilo de feijão”, conta. Órfã de pais desde menina, ela nasceu em Natal e foi criada pelos tios. Estudou em escolas públicas e privadas, no interior do Estado. Solteira, sem filhos, tem uma rotina puxada. Mora sozinha numa quitinete, acorda às 5 horas, pega três ônibus para ir trabalhar e volta para casa somente às 22 horas.
ISTOÉ – O que mudou na sua vida desde a divulgação do vídeo?
Amanda Gurgel – Minha rotina está temporariamente alterada. A repercussão do vídeo gerou um assédio nacional e esse é um momento que eu quero divulgar os problemas da educação no País e ser uma porta-voz de meus colegas. Então, estou me doando.
ISTOÉ – Pensa em se candidatar a algum cargo público?
Amanda – Olha, não me vejo agora fazendo outra coisa. Sei que o meu lugar é na classe trabalhadora, no chão, na escola, junto com os meus colegas. Sou filiada ao PSTU desde o ano passado, mas sempre fui militante, primeiro no movimento estudantil, depois pela causa da educação. Mas, nunca pensei em me candidatar a nada. É uma discussão futura.
ISTOÉ – Como gasta seu salário?
Amanda – Não tenho luxo, só gasto com o essencial, como alimentação, moradia, vestimentas e plano de saúde. Quase não tenho acesso a lazer. A última vez que fui ao cinema foi em 2010.
ISTOÉ – Por que se afastou da sala de aula?
Amanda – Houve um tempo em que eu trabalhava em três horários, estava na rede privada, acabei assumindo o município e tinha uma média de 600/700 alunos. Comecei a dar aula em 2002, tinha 21 anos, estava eufórica, topando tudo. O ápice do problema de saúde foi de 2007 para 2008, quando percebi que estava estafada. Estava em sala de aula com alunos pouquíssimos proficientes. Alunos de sexto ano que não sabiam ler palavras básicas como bola, pato, entendeu? Comecei a me desesperar diante da realidade, não sou alfabetizadora. O que vou fazer se nada do que estou preparada para oferecer eles estão preparados para receber? Sou professora de língua portuguesa e literatura portuguesa e brasileira de alunos dos ensinos fundamental II e médio.
ISTOÉ – Por que as crianças não aprendem?
Amanda – O aluno de 6 anos está em uma sala de aula superlotada e não há condição de alfabetizar ninguém dessa forma. Fala-se muito em democratização do ensino básico, mas se cada etapa do processo de aprendizado não é trabalhada de forma adequada, não há democracia. A escola virou um depósito de crianças, que é o que os políticos querem. Eles querem ter um lugar para deixar a criança enquanto os pais vão trabalhar e nada mais.
ISTOÉ – Foi o início da sua crise?
Amanda – Foi. Fiquei um tempo de licença e voltei em adaptação de função. Minha última aula como professora de português foi em 2008.
ISTOÉ – Quais funções você desempenha em cada escola?
Amanda – A resposta revela um sério problema de infraestrutura. Na escola do Estado, onde trabalho de manhã, estou na biblioteca. Na escola do município, passei por diversas funções. Passei pela coordenação e pela biblioteca e agora estou no laboratório de informática. Apesar de os computadores terem chegado há cinco anos na escola, só agora eles começaram a funcionar.
ISTOÉ – Por quê?
Amanda – Por várias questões. Primeiro, a instalação das máquinas foi muito demorada. Para isso, é necessário um técnico da secretaria porque a escola perde completamente a garantia daquelas máquinas se acontecer qualquer coisa errada. Depois de instaladas, foi um longo processo para a chegada de um técnico para fazer funcionar a internet e outro extenso período para a instalação do ar-condicionado na sala. Foram cinco anos que nós passamos com os computadores na caixa e com aquela sala fechada, apesar de toda a carência que se tem de espaço.
ISTOÉ – Qual o principal problema da educação no País?
Amanda – Se for para eleger um apenas, eu diria a falta de investimento. Como pode um País que deveria investir 5% do seu PIB em educação e investe 3%, paga esse salário irrisório aos professores e deixa a estrutura da escola chegar a um estágio de precarização que precisa ser interditada, como aconteceu numa escola no interior do Rio Grande do Norte, na cidade de Ceará Mirim?
ISTOÉ – Por que foi interditada?
Amanda – O corpo de bombeiros interditou a escola porque nada mais funcionava lá. O teto estava para desabar, a instalação elétrica estava precária, oferecendo risco à integridade física dos alunos e dos professores. Todos esses problemas estão relacionados à falta de investimento. Com um salário digno, o professor poderia ficar na escola, preparando as aulas, conhecendo os alunos, poderia evitar casos como o do atirador Wellington de Menezes. Como um professor vai ser capaz de observar algo se ele tem 600 alunos e não é capaz de, quando chega em casa, visualizar quem são todos? Não temos como mudar essa realidade se não tivermos um investimento imediato. Não estou falando de daqui a dez anos. Há a necessidade de se investir 10% do PIB do País em educação.
ISTOÉ – A que você credita a sua educação?
Amanda – É uma junção de coisas. Desde muito novinha, sempre fui metida. Comecei a ser alfabetizada e já corrigia as pessoas. Também acho que o funcionamento das escolas no interior é bem diferente do da capital. Nas cidades pequenas, onde estudei, funciona melhor. O fato de o professor ter acesso direto aos pais dos alunos coloca a criança e o adolescente na situação de “eu não posso sair da linha, senão o professor vai falar para a minha mãe”. Então, há mais disciplina. Minha educação de base foi de fato muito boa.
ISTOÉ – Se algum aluno disser a você que quer ser professor o que diria?
Amanda – Depende do dia. Acho que fiz certo, mas tenho meus momentos. Já cheguei a dizer ‘não quero mais’, mas em outros momentos, como hoje, estou me sentindo cheia de energia para estar na sala de aula e trabalhar com o aluno. Quando a gente é adolescente, tem uma estrutura familiar por trás. Sempre soube que professor ganhava mal, mas só entendi de fato o que isso significava quando tive de me sustentar e comprar meu primeiro quilo de feijão.
Fonte: Revista IstoÉ
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